sábado, fevereiro 26, 2005

A Fada das Teclas


Jessica Williams (Photo by Elaine Arc) Posted by Hello

Se existe uma fada na forma de se expressar no piano, dele retirando sonoridades e cadências musicais desconcertantes e repletas de lirismo, ela só pode ser Jessica Williams. Pianista exímia, debruça-se no interior do piano de cauda, e, ao parecer consertá-lo, corrigir uma súbita avaria, entre estrépitos secos, sons metálicos das cordas, aparentemente dissonantes, ilógicos, faz ressurgir lentamente do seu âmago, paulatina e com a subtileza do seu toque, uma melodia, inicialmente imperceptível, mas de fraseado cada vez mais claro e definido, que passa para as teclas, seguida daquela execução primorosa, única, só ao alcance de uma verdadeira fada das teclas. Aqueles dedos delicados são varinhas mágicas, ágeis, esguios, que se alongam, desdobram, atropelam e multiplicam como se o seu número teimasse em igualar o numeral inatingível das 88 teclas que constituem o piano. Capaz de nos embevecer, surpreender com o arrojo dos seus solos, no rearranjo de standarts clássicos, supostamente gravados e regravados por mestres e predestinados, mas redescobertos na excelência pianística de Jessica Williams. Os acordes tornam-se únicos, belos, com variações e improvisos estonteantes, pautadas por um tecnicismo e sensibilidade só ao alcance de um génio do piano, com total domínio rítmico, elegância na execução, sem querer enaltecer as suas faculdades de compositora.
A Thelonious Monk presta tributos siderais… igualmente a Bill Evans. Mas sobretudo a Monk, que, do alto dos céus da fama, na outra dimensão, ouvirá na companhia dos deuses, outrora terrestres e drogados (Parker, Gillespie, Evans, Miles, etc), a magia da execução primorosa desta dama do jazz. Ouvi-la é surpreender-se a cada instante pela irreverência poética que, de forma profusa, adorna as suas composições... As notas mais agudas, são murmúrios das estrelas, enquanto os graves rítmicos são o pulsar planetário, numa conjugação harmónica perfeita.
Ela é a fada do piano que faz levitar os vivos e ressuscita os mortos que sempre privilegiaram a música pensada. Quem não gosta de pensar a música, jamais gostará de jazz. Quem ama o jazz, não ficará indiferente a Jessica Williams. Experimentem.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Amizade Partilhada


Friendship, Picasso Posted by Hello

Faz tempo que estou arredado das lides da escrita. Os que gentilmente e com amizade me visitavam, devem ter-se interrogado: terá ido de férias? Estará doente? Perdeu o entusiasmo pela escrita? Está a passar por uma fase de falta de inspiração? Casou, e a mulher, de tão despótica, não admite que ele publique os seus textos? (livra!) Efectivamente, a resposta está entre as indagações aventadas. Adoraria ter ido de férias, mas costumo programá-las para Setembro. É um mês no qual tenho maior disponibilidade financeira. Agora, ando nas lonas, a contar moedinhas. É a sina de sermos os indigentes da Europa – a Europa Unida. Mas é insofismável que ainda sou dos privilegiados que saem nas férias. Voltando a Setembro, é nos dias deste mês que o horizonte adquire tonalidades tão belas, quanto inquietantes. Pressagia-se o fim do Verão, e o Inverno parece mesmo ali à espreita, mas os dias ainda são contemplados por uma generosa luminosidade, e é maior o fluxo dos que regressam de férias, do que aquele que segue em sentido inverso. E isso contribui para, nos lugares eleitos, poder conviver com a identidade desses espaços na sua maior plenitude, sossegadamente, distante dos abusos festivos ocidentalizados, permitindo conhecer as cidades no seu abrolhamento diário, no seu buliçoso frenesim, reflectido no regresso massivo à vida escolar e laboral dos seus habitantes. E como privilegio muito o social, dou particular destaque à observação das pessoas, da componente humana e das suas relações inter-específicas. Procuro sorvê-las, e é nelas que me enriqueço de vivências.
Não, não perdi o entusiasmo pela escrita. Adoro escrever, e os blogs possibilitam partilhar de uma forma intensa os nossos sentimentos, pontos de vista, ideias, entre muitas outras coisas. Alguns expõem-se de forma desnudada, outros revelam-se nas entrelinhas. Mas a escrita é um diálogo interior. É a nossa interpretação das pequenas insignificâncias da vida. A nossa visão do mundo. Por vezes sentimo-nos tentados em querer saber quem é o(a) autor(a) deste ou daquele blog, mas creio que uma partilha desta intensidade perderia o seu enlevo caso esse interesse fosse satisfeito. Ou talvez não. Considero que a partilha é mais genuína e verdadeira, subsistindo o mistério.
Realmente fui acometido por febres altas e inusitadas. Não me recordava ao certo o que era ter febre. Só ao segundo dia fui admoestado pelo cauto maternal. Coincidiu com o dia das grandes decisões para o país, com o traçar de um novo rumo – pelo menos é o que todos esperamos. E a hecatombe foi de tal ordem para a direita, que em mim, o efeito manifestou-se em estados febris atrozes. Terei sido alvo de um esconjuro? Mas, retomando o raciocínio, ainda consegui cumprir o meu dever cívico. Talvez a remota forma de expressarmos livremente a nossa vontade. A conjuntura política actual faz-me lembrar o célebre desígnio tão defendido por Sá Carneiro: “um governo, uma maioria e um presidente”. E apesar do homem não ser profeta, adivinhou o cenário que há 20 e muitos anos atrás, estabeleceu como meta, todavia, o destino muitas vezes escreve-se de forma irónica e sarcástica…
Concomitantemente, passei uma fase de teimosa improdutividade na escrita. Não me ocorria nada. Rigorosamente nada. Talvez reflexo da insipidez dos meus dias. Ou a indisfarçável falta de imaginação, que, à falta de melhor, relega-me a redigir memórias, pequenas crónicas, ou missivas insípidas. Outros há que, de tão profícua imaginação, fazem da ficção o seu porta-estandarte. Preciso de atirar achas para a minha imaginação, ateá-la até ficar incandescente e soltar-se em labaredas siderais de mirabolantes contos, de fantasiosas histórias, de textos de beleza fulminante.
Mas, neste aqui, agora, enquanto a chuva tilinta lá fora, limito-me a quebrar a linha programática do meu blog (esta expressão soou a politizada – devem ser influências da semana anterior), escrevendo-vos directamente. Até porque gosto de liberdade. Assim, falo-vos na primeira pessoa. Fazendo-o para amigos. Ou será que é mais significativa uma amizade baseada no circunstancial cumprimento da praxe, e na troca de fúteis perguntas igualmente circunstanciais que entram no rol dos que se movem por condutas socialmente correctas, gastas de tão mecanizadas e arquitectadas por sorrisos maquinais? Não será mais amizade a partilha da nossa alma, do nosso Eu mais profundo, da nossa sensibilidade para com o mundo, das nossas inquietações, do amor e seus cambiantes? É por isto que sinto lufadas de amizade em todos os que me visitam, quer deixem ou não comentário. É o obséquio que nos alenta a continuar. Aproveito para desculpar ainda os que não conseguem alhear-se de sentimentalismos, não sendo capazes de escreverem outros comentários que não sejam elogios explícitos, que nalguns casos, reagi, ligando a perguntar:
– Quanto te devo por aquele comentário que me deixaste no blog? Obviamente que me refiro a amigos. Amigos que já o eram, antes de fazer esta incursão no mundo da blogosfera. Reconheço igualmente o meu sentimentalismo, e, aos Vossos olhos, até algumas mediocridades que escrevo, transformam-se em pérolas luzidias. Diria que se assemelham a uma transformação divina.
Com ou sem imaginação, estou de regresso, mas a escrita não pode obedecer a um método, a uma programação delineada, a uma periodicidade rigorosa, mas a estados de alma, ao sentimento que nos impele a recorrer a ela, e que expele com a força de um vulcão, incandescências em forma de palavras.
E para finalizar, não tolero despotismos.

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Não existes!

- Tu não existes!
Fico furibundo quando me respondem desta forma, seja por qualquer favor prestado, por intenções reveladas, por estirada anedótica tacitamente conotada com demência, ou mesmo, por um mero comportamento que desvele um pouco da minha condição humana. Se me dessem alvíssaras… mas, quando mo dizem de forma lancinante e a pretexto de me depreciar, em tom irónico, ou bajulando-me no sentido de me extorquir algo… Espezinhar a minha existência em momentos onde já se começam a fazer sentir os efeitos da corrosão de mais uma crise existencialista… Não! Não existo, mas não mo digam. Peço-vos! Prefiro que me batam. Com a agressão espertarei os meus sentidos, e aí, sentirei ostensivamente que realmente existo. De forma mais determinante que o pensar. Porque se penso, existo como ser pensante, mas existindo, entrarei em contra-ciclo com o mundo da existência, que somente existirá enquanto eu amar e for amado.

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Sem Asas Para Voar

O conforto, tão ansiado pelo homem moderno, vem-se a constatar que aprisiona verdadeiramente. O alcance do bem-estar acomoda-nos à inércia de uma condição que não é nossa. É paradoxal a liberdade que nos és apresentada, uma vez que livres, não temos asas para voar. Ficticiamente, sentimo-nos livres, convencemo-nos que tomamos as nossas opções, mas as amarras são por demais evidentes. Os voos ficam limitados aos compromissos das dívidas e encargos que progressivamente crescem de uma forma exponencial. Somos oprimidos pela produção, pela ânsia sôfrega de que precisamos de produzir. Tornamo-nos autómatos.
A ligação que intrinsecamente nos compagina à natureza, foi suprimida, como se o cordão umbilical do mundo não fosse mais necessário. Somos desprovidos da nossa essência, e a harmonia com o universo é conspurcada por artifícios vários que nos entretêm. A poesia do frio, da chuva, do rumorejar do vento na folhagem, da maresia, do ribombar das ondas, deixou de nos ser familiar. Tornaram-se momentos raros, de indiscutível deleite, mas os quais, nossos sentidos estranham.
O emprego tornou-se essencial para a nossa auto-estima, para o nosso orgulho, para a honra e estatuto que a sociedade convencionou; em suma, para a nossa afirmação. Sem ele ficamos privados do acesso ao consumo, aos bens básicos, e a todos os serviços fundamentais. Este por sua vez (o consumo), colmata-nos carências, preenche vazios de forma fictícia, efémera. Porém, crescer, muitas vezes obriga-nos a sair, a viajar, a procurar novas experiências, outras vivências, assimilar novas formas de estar, de ser. Mas como fazê-lo? O trabalho sufoca-nos, e viajar, apenas podemos fazê-lo de férias em períodos insuficientes para qualquer transformação operar-se.
O acesso à habitação própria, jamais esteve tão facilitado. Para benefício de todos, e indubitavelmente, dos lobbies associados. Contraímos uma dívida, e desde aí somos acorrentados com amarras que nos impedem de voar. Gostaríamos de seguir outros fitos, rumar para outras latitudes, e o que era uma facilidade, virou condicionalismo. A envolvência do nosso cantinho, enlea-nos e não somos mais livres. A troco do facilitismo. Do conforto. Da acomodação. E se as escrituras narravam que “era mais fácil um camelo passar por um buraco de uma agulha, do que um rico entrar no reino dos céus”, nada mais verdade. Que o reino dos céus representasse a Liberdade. Porque não acredito noutro.
Com apenas alguns bens, ficamos ancorados no nosso catre. Nossa mente atrofia, não nos é permitido voar. Pensar. O consumismo aliena-nos da fatalidade da morte. Centralizamos as nossas metas no alcance de bens materiais, e na quantidade profusa de tentações que nos impingem a cada instante.
O despojamento, que outrora permitia um enriquecimento intelectual e emocional, é substituído pela cultura do ter que tem o efeito de estrangular os nossos horizontes, aviltar a nossa mente; os admiráveis de ontem que com coragem e abnegação moveram-se por causas e valores, são substituídos por um rebanho de seres que em comum, têm quase tudo: comportamentos regrados, pré-concebidos, destituídos de causas e valores, sem vivências, rendidos à mediocridade da imagem e da aparência. Não lhes são discerníveis os cambiantes cromáticos do horizonte. Nem sentem uma significação mais condizente com a nossa condição humana. Tudo parece tão ocre. Insípido.
O conforto, a par da tecnologia, nem nos permite contemplar o resplendor de um nascer do sol, nem o romantismo do seu cônjuge, pôr-do-sol. Não saboreamos a magia de uma alvorada em sua cadência crescente de vida. Ignoramos a melodia da natureza, substituindo-a aos ruídos civilizacionais: carros, motores, alarmes, sirenes, buzinas, e um deambular frenético assaz ruidoso para a alma.
A tecnologia barra-nos o convívio, e embora vivamos numa proximidade física encavalitada, sentimo-nos ausentes uns dos outros. Mais solitários. Estabelecemos mais relações com a televisão, com o computador, raramente com um livro.
A isto chamamos liberdade. Liberdade que nos é oferecida como tal, armadilhada, sem que nos consigamos soltar desta ludibriação ardilosa. Mais ridículo é algumas das nossas observações, quando somos confrontados com outras culturas onde o tempo corre lentamente como um rio. Em lugares onde ainda se privilegia a contemplação, o convívio, as relações humanas na sua maior plenitude. E alguns ridículos olham com desprezo. Aqueles que de tão ignobéis, não se apercebem que não têm asas para voar, e que a dotação indigente que envolve aqueles dali, é um despojamento material que permite voar pela vida, livres, e com a filantropia intrínseca à nossa condição de gente. Aquela que já perdemos irremediavelmente.

Duarte Olim

quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Levada


 Posted by Hello

Serpenteando a montanha,
Por vales estreitos, abismos abruptos,
Rasgando nevoeiros opacos,
Segue branda,
A poção cristalina e pura
Das nuvens extorquida,
Com zelo e engenho,
Até à despedida.

Da ilha escarpada,
Nas levadas sulcadas
Pelo brio e suor,
Da remota coragem bravia,
Corre nestes trilhos de vida,
Quais veias do mundo
Da Atlântida perdida.

Uma melodia sedutora
Ressoa no seu quedar
Em notas celestiais
Inaladas por odores campestres.
Assim lentamente
Desliza, calcorreia a vegetação,
Descendo devagarinho
Até à civilização.

Transportadora de nuvens,
Da brisa húmida oriunda,
Segue o líquido da vida,
Que ampara os viajantes,
Alivia a secura
Irrigará os campos
E as encostas de verdura.

Poema e imagem: Duarte Olim