sábado, maio 28, 2005

Porto de Abrigo

Procuro-te na vastidão do mundo, encontro-te no sorriso de uma criança, busco-te no afago caloroso de dois anciãos amigos que, na velhice, espreitam o encerrar do pano. Procuro-te por azimutes incertos, galgo montanhas, faço imprecações ao céu que, inclemente, me riposta com a luz do seu astro, ofuscando-me o olhar. Meço o desfiladeiro que sulca a montanha dos meus sonhos, e na minha vertigem, deixo o meu fantasma obscuro resvalar até ao fundo. De lá, sibila o vento e sussurra-me o sonho, foragido, imperceptível e intrincado na penumbra do açoite. Liberto-te fantasma e inicio a travessia do desfiladeiro. Vou sem medo, destro, com a magia que aquela alma me inculcou no coração. Encontrei-te! Dou por mim levitando. No fundo do mundo, vacilo e a harmonia em meu redor ganha contornos periclitantes. Vocifero desassossego, mas, em desespero, lembro-te outra vez. És tu! Dirijo os meus pensamentos para ti e pouso no remanso do teu colo. O meu coração encontra a concavidade do teu braço que me acolhe. Olho de revés para a ravina, e, volvendo o olhar para a planície, espraio os meus sentidos. O mar resplandece, e por entre a bruma, distingo uma criança, correndo para mim, sorrindo-me. Estremeço! Sou eu, miúdo, que sigo no meu encalço. Retomo o caminho, desconcertado, estarrecido. Inclino-me para uma luz que raia lateralmente. Viro-me e ao meu lado segue, serena, uma mulher doce e bela. Ela observa-me, esboça um sorriso e olha em frente, como que a indicar o caminho. Ruborizo. Extasiado, prossigo com a coragem heróica, qual guerreiro de batalhas perdidas, injustas, revigorado pela ousadia corajosa de não querer voltar a perder. Pelo amor ausente.

sábado, maio 14, 2005

Passageiras Fugazes


 Posted by Hello

Há pessoas que nos tocam, que passam por nós como cometas, deixando apenas um rastro de luz que nos enleva o espírito. Há pessoas que nos beijam com letras, que no jogo das palavras, se revelam artífices, mas que espelham nas ideias, a magnanimidade da alma, assente numa sensibilidade invulgar que sobeja e nos embriaga.
Manifestam-se através de olhares que nos estremecem, em gestos cuja destreza parece devedora ao mundo onírico, em palavras redigidas com uma sensibilidade que nos causa voraz empatia.
Aparecem na nossa vida como o orvalho da manhã, condensam-se e recriam pequenas gotículas de água cristalina que resplandece à luz, e que no seu crescimento esplendoroso, vão formando uma centelha cada vez mais ténue, sedutora, que, num esgar, se desfaz na fatalidade da vertigem do mundo. Talvez nos alertem para a efemeridade das coisas terrenas, numa ilusão fugaz que destrona a possessibilidade, aviltada pelas passagens que se vão impregnando nas nossas mundividências, devolvendo-nos a verdadeira e loquaz sina da existência, integradora na harmonia do universo. Desprendemo-nos das coisas vãs do mundo, ansiando novas gotas que, inesperadamente, continuarão a surgir, tornando admirável e aliciante a descoberta e depurando a nossa alma que, paulatinamente, carrila no trilho que conduz ao arco-íris da vida. Queria ser uma gotícula na vida de outros, neste desejo de retribuir magias de momentos, partilha de fragmentos de mim. Queria solidificar-me em gotícula, mas não digo para quem. Quiçá não saberei. Elas surgem e num lampejo, desaparecem inapelavelmente, indiferentes face à nossa inércia para agarrá-las. Fica a sua acção depurativa, na qual, quanto mais gotículas puras e cristalinas caírem na minha alma, maior será a catarse da minha essência.
Sobra a sensação de vazio, certamente resultante do potencial que, de soslaio, esteve ali ao alcance das minhas mãos, mas que devolveu ao todo, a sua forma. Sentimos que passaram por nós como relampejos, sem, todavia, conseguirmos definir os seus contornos mais profundos.
São sinais. Tão fugazes como este quotidiano, não permitindo repetições ou recuos. Quando acordamos para elas, já só lhe vemos o rastro. Somos acometidos por saudades, mas elas, no oceano do mundo, continuam a sua missão peregrina, quais balões de oxigénio que nos desanuviam o respirar, que nos amaciam a alma e fazem palpitar os corações. Estremecemos de candura, ansiamos pela sua presença, enquanto resplandece o seu esplendor, e num esgar, imiscuem-se na vastidão do oceano, ficando a sensação de dor.
Distantes, idas, certamente a memória não as alcançará todas, mas o coração, seguramente, já as possui.

quinta-feira, maio 12, 2005

A Luz na Escuridão

O manto da noite envolvia a cidade, e daquele flanco da encosta, tremeluziam pequenas luzes oriundas das janelas. A calmaria era entrecortada por focos luminosos que ziguezagueavam de forma ininteligível por entre ruas e avenidas, acompanhados por rosnares de motores. Era o recolher a casa dos últimos carros. Ali fora, sentia-se a brisa fresca que reprimia a permanência no escuro da noite, onde a bruma competia com as luzes que iluminavam as ruas, convidando ao recolhimento. Algures, entre aquele emaranhado de luzes e prédios, vivia o António, um miúdo de rebeldia contida, estereotipada na sua tenra idade. A sua mãe ultimava os preparativos do jantar, juntando temperos à sopa de espargos que, seria acompanhada por broa de milho com manteiga e fruta como sobremesa. O rapaz encontrava-se no quarto, no pensamento dos pais, estudando. Todavia, na clandestinidade, jogava, absorvido, um jogo no computador. O pai estava refastelado no sofá, acompanhando as notícias na televisão, enquanto a irmã, Isabel, com zelo feminino, arrumava as coisas para o dia seguinte, planeando alguns deveres para depois do jantar, enquanto ouvia uma música melíflua, repleta do romantismo que inebria as jovens adolescentes.
A mãe saiu da cozinha e percorreu as divisões do pequeno apartamento, para reunir todos para comer. O António, num colapso repentino, debruçou-se sobre os cadernos, estrategicamente abertos à sua beira, e quando sentiu a maçaneta da porta a mover-se, simulou exasperação pelo jantar, esboçando uma expressão de enfado, imputável ao pretenso estudo que supostamente o fatigava. A Isabel, rapariga obediente e metódica, anuiu ao chamamento e seguiu ordeiramente a mãe até à cozinha. O pai resmungou ao chamamento da mulher, pois estava a acompanhar um debate televisivo. A mulher avisou-o que queria ver a novela das nove. Ele suspirou, e taciturno, não arredou do sofá. Após muita zanga o António veio jantar, sem contudo passar o nível que ansiava do jogo. O pai juntou-se por fim à mesa, embora visivelmente contrariado. Ali, cada um ausente do outro, iniciaram a refeição, saboreando a sopa deliciosamente preparada, omitindo contudo, qualquer comentário abonatório a quem a confeccionou. A Isabel interrompeu:
– Mãe! Amanhã posso ir ao cinema após as aulas?
– Podes, mas não chegues tarde!
O pai continuava atento à televisão que, estava com o volume mais alto, indiferente aos filhos. Terminaram o jantar, o António correu para o quarto, pretensamente para estudar… O pai teve um arrufo com a mãe, e após as tarefas, ela teve de ir ver a telenovela para o quarto, pois entretanto, na sala, iniciara-se uma transmissão de futebol.
A noite estava calma, nisto, num laivo súbito, tudo se apagou… a luz deu lugar às trevas e do silêncio irrompeu a voz aflita do António: “O que aconteceu?”. Ouviu-se a mãe lá ao fundo: “Tenham calma, não saiam de onde estão que vou buscar velas. Houve um corte de energia!” O António estava atónito. Tinha medo do escuro. O pai mastigou um palavrão abafado, espelhando a sua impotência perante tão inusitada ocorrência. Volvidos alguns minutos, ouviram-se vozes na varanda do andar de baixo. A sala iluminou-se de velas, e o corte eléctrico não se compadeceu com o impropério contido do pai do António. Em desespero de causa, tentou o rádio, mas em vão. Só depois reflectiu que o mesmo era alimentado por electricidade.
Nisto, estavam todos na sala e iniciaram um tímido diálogo. O António estava inconsolável, mas a pedido da irmã, aceitou deslocar-se para fora, atraído pela quietude da noite. Na varanda, escutaram muitas vozes que acorriam à espreita de identificar a causa do sucedido. A paisagem nocturna encontrava-se alterada, onde escasseavam luzes foscas de velas. Na sala todos se resignaram e aguardavam que regressasse a luz. Insolitamente, reuniram-se ali naturalmente, conversando do dia, das preocupações que os afligiam, enquanto os filhos falavam da escola, desabafavam com os pais e estes, pouco rotinados com esta proximidade, deixavam o diálogo fluir e enleavam-se nesta cumplicidade, procurando aconselhar, apoiar, aproveitando o tempo que naquela noite, parecia soçobrar para a família. O pai mitigou a sua irritação, à medida que as velas lhe retemperavam as têmporas, até ali irascíveis. As silhuetas no escuro e as sombras que se desenhavam da luz das velas, proporcionavam um recolhimento tão aconchegante que se esbateram as barreiras que o quotidiano havia erigido. Eclipsou-se a luz eléctrica, mas acendeu-se a luz naquele núcleo familiar.
Até ao deitar, aquele modesto espaço prodigalizou intimismo que se configurou numa noite serena, tranquila e um amanhecer alegre e feliz.