
Quando tudo se conjugava para deparar-me com o sossego matinal de um abraço ripícola, embrenhado na luz urbana, a aproximação da amurada da pequena e catita Saint Louis atingiu-me com graves de contrabaixo, e, sem mais delongas, subitamente fui surpreendido por um solo de saxofone. A melodia soava-me familiar. Não somente pelo som metálico característico, mas porque, num lance mental, identifiquei so what. Gosto do insólito, mas num feriado pachorrento, nada fazia prever a audição destes sons, tão-pouco reconhecer a melodia de Miles irrompendo na lisura daquela bucólica manhã. Desci o lanço de degraus na ânsia contida de encontrar os músicos ao nível do rio. A versão duo perfilava-se no microclima recriado pela sombra afagadora de um plátano. Sobre aquela calçada granítica, polida pelo tempo, os artistas ensaiavam acordes, compassos, variações para a execução do standart; o concerto era dirigido às infindáveis ondinhas que os barcos empurravam para a margem. Era um 1º de Maio e, por todo o lado, erguiam-se pequenos mostruários vendendo umas flores sóbrias, brancas, que não descortinei o significado. Deduzi uma evocação ao dia do trabalhador, enquanto os músicos, de dissemelhante ancestralidade, comungavam aquele célebre trecho que eu rememorava, que me deliciava e comprazia. Fotografá-los foi um esforço de monta para quem a invasão é uma afronta, para quem prefere que certos momentos fiquem retratados na retina, sem lhes usurpar a alma. O solo do saxofone ia drenando nos interstícios da ilhota, o rio respondia orquestrando uma harmonia silenciosa que chapinhava ritmada. A generosidade do plátano, de grandiosidade tão frondosa como a sua copa, oferendava-me um lugar de confortável assento, ensombrado pela sua frescura. Acolhido ali, tal como enleado pela cidade plural, escutava o enleante decoro entre aqueles músicos. Não obstante a dimensão do contrabaixo, o saxofone intercalava-o harmonioso, reverente, enquanto a condição racial não distinguia entre seres ou cores, confraternizavam-se na igualdade una da fraternidade. A radiância cultural ofuscava qualquer esgar de fútil mesquinhez, e a pluralidade dominante, definhava a maledicência. A tolerância, aqui, é bandeira, a arte é ovacionada, seja ela oriunda da terra ou de qualquer ermo sideral.
A impertinência da minha escrita pareceu intrigar este enlace melódico, e, cautelarmente, deixei-os entregues ao ensaio, seguindo na direcção inversa, ouvindo desfalecer so what à medida que me embrenhava num tempo esquecido do qual refulgiam os últimos compassos, até ao regresso…
Nota: So What é a primeira faixa do album Kind of Blue de Miles Davis editado originalmente pela Columbia em 1962, considerado por muitos amantes e críticos de jazz, como a maior obra-prima do género.