terça-feira, abril 22, 2008

A Liberdade


Foto tirada daqui

A evocação de Liberdade faz-me lembrar o apogeu do Iluminismo e a sua coroação que culminou com a Revolução Francesa. Quando acordei ao mundo, eras uma simples palavra, somente com a consolidação de um crescimento, mesmo rural, fui despertando para a realidade que a Liberdade representava. Nesse então, nem me apercebia das crescentes privações que reinaram quando dela outros camaradas foram coarctados. Tão-pouco sonhei nos quantos por ti sofreram em exílios e masmorras. Sem falar sequer naqueles que foram mártires desta conquista. Agora que muitos te dão como adquirida, já não sei contra que veneno actua o teu antídoto. Multiplicam-se as formas de te subverter, de te pilhar a essência. És citada em vão, mas nem esse sacrilégio apaga a vitalidade incontornável do teu significado. Grassam contra ti atentados, violações, anátemas, profanações. Em comum têm o facto de virem camufladas de uma indumentária que evoca Liberdade, porém, é precisamente aí que reside a sua perniciosa acção; sei que pela Liberdade ainda clamam os justos e outros arautos de têmpera íntegra, mas também argutos prevaricadores que te parafraseiam sem cessar, munidos de arenga brejeira que, invariavelmente, debita insultos e calúnias, contagiando aqueles boçais destituídos de outra referência que não seja a telenovela e o futebol.
Liberdade é ouvires música, não aquela que te impingem, mas a refinada e límpida, recriada por talentos que igualmente suplantam o acorde fácil; aquela que tributa a melodia. Liberdade é evadires-te da banalidade dum quotidiano torpe, dos usos e das rotinas que outros te impõem. Liberdade é a maluca que te leva a deambular pela ondulação das palavras escritas, te conduz ao delírio em textos cuja lógica te fertiliza o intelecto e cria em ti um porto seguro inexpugnável, só teu, de dignidade e honorabilidade inatingível. Liberdade é a força que te move para enfrentares aqueles que te censuram com teus gestos que os sabujos apelidam de subversivos. Liberdade é expressares-te livremente sem receio de represálias, acreditando que a verdade e a justiça são valores inabaláveis. Liberdade é um desígnio que reverencio, mas não me dá o direito de delapidar a herança de gerações predecessoras: património natural, cultural, arquitectónico, social… Liberdade é um percurso de vida, é uma forma de estar que te dá autonomia intelectual, ao invés do facilitismo que pecaminosos te apresentam, corrompendo-te com o lucro fácil à custa de sofismas ardilosos, assaz pútridos para, na sua plenitude, exibirem sociedades assimétricas, degradadas e sem rumo.
Liberdade é também dizer basta! É o direito à indignação! É lutar para que o silêncio não te demita do teu dever por valores que Abril consagrou. Não temas a urticária de certos desvalidos que ao sussurro da efeméride de 25 de Abril, não disfarçam tiques de nervosismo que muitas vezes parecem resvalar para o despótico interior que os habita.
Viva o 25 de Abril!

quarta-feira, abril 09, 2008

A Revolta


É risível a forma como a natureza manifesta a sua rebeldia e desbarata a lógica da vileza humana. Não me regozijo com os efeitos fatídicos por ela provocados na exacerbação dos seus devaneios, nem tão-pouco almejo identificar um bode expiatório para as calamidades. Normalmente culpabilizo em sentido genérico a sociedade, o défice de civismo, não me coibindo de atribuir responsabilidade crescente às hierarquias detentoras das decisões. Co-responsabilizo individualmente cada um com os seus actos. Não obstante, não deixo de expressar deferência e uma cordial anuência à harmonia reclamada pela natureza. Creio mesmo que ela representa o arauto de outras demandas. Quando nos empenhamos em estrangular, macular, destruir e castrar a essência que caracteriza o autêntico e o belo, numa gargalhada insurrecta do Cosmos assistimos incrédulos à redução da imponência boçal do betão, ao nada. Compreendo a mãe natureza, solidarizo-me com a sua rebelião e apelo a que avisos desta monta não sejam relegados para um torpe esquecimento. Que se inscrevam estes alertas na mente e na memória colectiva condicionando opções futuras onde deve imperar a harmonia através da conjugação equilibrada entre a natureza e a técnica.
Por norma, é incontestável que a destruição perpetrada por forças da natureza aflige com maior significado as linhas simétricas de traço fácil e de construção desproporcionada, poupando as que obedecem a uma lógica integradora da harmonia que continua a urgir. A indómita raiva de uma intempérie recai sobre o disforme e abala os alicerces da ganância, resultando em cenários funestos de fealdade bélica. Com custos bem avultados que negligentemente nos abstêm. Em oposição, os danos de uma tempestade sobre o natural, molda, enforma, lapida e estiliza o autêntico em todo o seu esplendor. A mim, parece que à falta de sublevação pela natureza, existe um justiceiro implacável, um aliado inexpugnável.

Dona Vitória (Final)

(...) Passávamos períodos de calmaria, mas a Dona Vitória, de quando em vez, vinha à baila. Certo dia, alguém se lembrou de mandar para dentro do quarto, através do postigo, duas lagartixas irrequietas. O alvoroço foi retumbante, embora ninguém tenha assistido como ela se desenvencilhou daqueles répteis repugnantes. Normalmente, a lagartixa desorientada trepa inadvertidamente pelas pernas fora, provocando um alarido e gritarias insólitas, talvez esta tenha feito isso mesmo, a avaliar pela voz áspera e irada da idosa que, debitando calão de grossa estirpe, saiu para a rua com uma enorme faca. Tinha, à-vontade, umas quinze polegadas só de lâmina. Ouviu-se um burburinho nervoso lá fora, precedido pela perseguição atroz a quem estava mais próximo. Porém, a destreza dos seus movimentos, impediam-na de apanhar quem quer que fosse. Todavia, este episódio, aliado à raiva que se lhe leu no olhar, provocou o pânico geral. A juntar a isso, na escola, houve bolos (método de castigo que consistia em levar vergastadas com uma régua, nas mãos) para os prevaricadores. Os famigerados recordistas eram olhados com um misto de admiração e desdém. Havia recordes de trinta em cada mão, outros que se precaviam, trazendo as mãos oleadas, pois constava que esse pré-tratamento fazia saltar a régua, não se tornando o castigo tão doloroso.
Após o episódio das lagartixas, só os adultos se atreviam a passar diante da casa da Dona Vitória. As crianças que residiam na margem direita da ribeira do Massapêz, ao invés de fazerem o seu trajecto habitual de regresso a casa, seguiam pela escola afora, num percurso inverso e mais longo, mas que evitava a passagem diante da casa da velha. Volvidas algumas semanas, só alguns rapazes mais corajosos recomeçaram a passar por ali, mas faziam-no tomando as devidas precauções, não fosse a idosa desentorpecer os músculos das pernas e alcançá-los num ápice, podendo daí resultar consequências fatídicas. Ninguém tinha esquecido o acontecimento que lhes tinha causado tanto pavor, nem o brilho daquela faca demoníaca nas mãos da idosa.
Até o sol, encandeado pelo reflexo lancinante da faca, espreitava timidamente pelo postigo do quarto da mulher. Lá do outro lado, a rocha da penha de águia velava a vila, enquanto a Dona Vitória calcorreava as imediações da casa, carregando um balde de água trazido do fontanário da praça ou levando, num tacho, restos de comida para os gatos do Senhor Brás. Quem não assistia a este gesto, perscrutava, sem êxito, em busca de um resquício de generosidade naquela senhora.
Com os anos, várias gerações de alunos foram passando por aquela escola, e os atropelos à velhota continuaram, mas, teimosamente, manteve-se no seu recanto, confiante na sua insurrecta coragem para enfrentar os miúdos. Fê-lo com mais um ou outro percalço, sendo as suas aparições cada vez mais raras.
Viveu na casa térrea, coberta por telhado de quatro águas, com o quintal que coincidia com a rua, onde as crianças brincavam no recreio da escola. Raramente espreitava pelas janelas escarlates que se dispunham aos pares em cada flanco da habitação caiada de branco, mas abria-as intercaladamente.
A porta vermelha do postigo, por onde deram entrada as traquinices e saíram as iras da Dona Vitória, um dia deixou definitivamente de se abrir…
João Duarte Olim

segunda-feira, abril 07, 2008

Dona Vitória (1ª parte)

Na descida do caminho para o engenho, o ar adensava de maresia, e o ribombar das ondas entrecortava, espaçadamente, a quietude da vila. O muro de cimento que ladeava o caminho, carcomido pelas agruras da humidade e do tempo, era solário de lagartixas que se refastelavam na amenidade do meio-dia. O ócio reinava e a tépida laje de cimento que o sol aquecia, servia de pista para as proezas pueris das jovens rastejantes, enquanto as mais velhas se exibiam em rituais nupciais, acerbados pela ira de alguns machos de um verde pestilento.
Estávamos em Maio, altura em que o engenho da cana-de-açúcar laborava em pleno. Era curioso assistir ao rodopio dos miúdos, quando um daqueles bedfords se dirigia para a fábrica carregado de canas, naquele deslizar lento, acompanhado pelo rugir do motor gripado. Os pequenos mais afoitos corriam loucos no seu encalço, galgando até à carroçaria do camião, e com ele em andamento, furtavam algumas canas-de-açúcar para chuparem. De nada valia ao condutor vociferar imprecações ameaçadoras contra eles. Enquanto isso, as lagartixas desvairavam, frenéticas, após inalarem o aroma doce das canas, ensandecendo na ânsia de apanharem um bagaço rejeitado por um garoto.
Após contornar a esquina que virava para a Rua Dr. João Abel de Freitas, passávamos a taberna do Rapa, famosa pelos seus apetitosos petiscos, confeccionados para engodar os bêbados da freguesia. Seguindo adiante, começávamos a ouvir a azáfama das crianças na escola; à esquerda, seguiam dois becos que davam acesso a algumas casas: um deles atalhava até ao Penedo, seguindo pelo caminho com o mesmo nome. No final, elevava-se essa formação do manto negro do litoral, onde o basalto era parcialmente submerso com a maré-alta. Voltando à rua anterior, após passar ao lado do armazém do Sr. Calisto – implantado entre os dois becos –, ladeávamos a modesta moradia da Dona Vitória. Durante o dia, era possível espreitar de soslaio para o interior do quarto, através do postigo, já que a idosa se recolhia ali, ora a bordar, ora nas suas cogitações soturnas. Acompanhavam-na os seus devotos santos, divindades que mantinha de forma ordenada sobre a cómoda que tinha defronte de si. Este apego promíscuo de devoção, reproduzido em várias versões de Nossa Senhora de Fátima, Santo António de Lisboa ou numa panóplia de imagens de Cristo e santos de fina igualha que não se conseguiam descortinar, não lhe serenava o espírito rebelde, tantas vezes acicatado pelos pequenos mais guerrilhas da escola.
A Dona Vitória vivia sozinha. Era uma senhora de idade avançada, com o cabelo grisalho e amarfanhado pelo desleixo dos anos, o que lhe dava um ar mais ameaçador, sobretudo quando a fixávamos nos olhos, pressentindo a desconfiança que toldava as suas feições: um rosto miúdo, realçando-se a pele encarquilhada pela corrosão do tempo, e um queixo proeminente e ossudo. Os lábios sumiam-se desbotados, e os seus olhos negros, apesar de penetrantes, perdiam-se sem expressão na languidez da sua decrepitude. Circulava com o tronco dobrado, acentuando a sua corcunda, pouco meritória para a sua baixa estatura. Vestia blusas de seda brancas, cobertas pelo casado de lã de cor parda que a acompanhava todo o ano, fizesse calor ou frio. O deszelo na indumentária era manifesto, nem sempre correspondendo a uma vestimenta condizente com o seu carisma; caracterizava-a uma saia de flanela, ponteada por florzinhas coloridas, num fundo branco debruado na base de vermelho. Esta veste desfazia a sua mordaz crueldade como a reverência de um professor se desfaz com a mancha de giz branco no nariz, resultante de um prurido inopinado, socorrido pelos dedos brancos do escrevinhar na ardósia do quadro.
A Dona Vitória, nas poucas vezes que saía e atravessava a rua, mostrava um andar trôpego, caminhando sobre a calçada de paralelepípedos de basalto que formavam um mosaico no chão, mais tarde conspurcado pelo asfalto. A vitória estava apenas presente no seu nome; a outra ter-se-ia esfumado no tempo, destronada pela implacável erosão que desembocava, em primeira instância, na velhice. Não era inédita a aproximação às divindades para penitenciar as extravagâncias de outras eras.
Diariamente, chegávamos às onze da manhã e os miúdos da escola saíam disparados para o recreio, trazendo com eles o seu papo-seco com manteiga. Muitas vezes trazia marmelada. Os alunos que nesse dia tinham sido incumbidos de barrar o pão, argutamente escondiam o “seu” num canto estratégico, para, episodicamente, se deliciarem com manteiga aos molhos. Enquanto isso, os mais traquinas cobiçavam os mais favorecidos pela faca da manteiga, abrindo despudoradamente quantos papo-secos lhes apareciam diante, a fim de encontrarem o mais generoso no barramento. De nada valiam os castigos das professoras. Na altura, não havia Contínua, daí valer tudo, desde que se saciassem bem os estômagos.
Lá fora, a maioria corria numa alegria esfuziante. Jogava-se ao ferrolho. Era um jogo popular que, habitualmente, gerava o alvoroço das crianças. Resumia-se a criar um grupo que ficava encarregue de apanhar, em correrias siderais, os adversários. Os que iam sendo capturados, eram encaminhados para um espaço limitado, aguardando que alguém da sua equipa os viesse salvar. A operação exigia pernas e agilidade, desenrolando-se junto à porta do armazém do Sr. Calisto, que servia de quartel-general da brincadeira. As meninas mais destemidas adoravam alinhar nestas correrias com os rapazes. As outras continham-se em pretensas conversas mais adultas, sentadas sobre o muro em frente da escola. Faziam jogos entre elas, sem o alarido desconcertante dos garotos. Todos os dias, exceptuando o fim-de-semana, a Dona Vitória via passarmos-lhe diante do postigo, em correrias loucas. Ela enfurecia com aquela folia descontrolada e não havia devoção que amainasse a tempestade delirante das crianças. Os rapazes mais destravados, apercebendo-se da ira da velha, faziam-lhe as partidas mais inimagináveis. Os adornos de loiça, os bonecos de porcelana e toda aquela procissão de figuras hirtas na cómoda do quarto, eram, variadíssimas vezes, alvo de jogos de pontaria, em que o rapaz capaz de derrubar uma daquelas figuras com uma pedra certeira, alcançava, nesse dia, a fama. Exaltávamos-lhe admirados pela sua ousadia de herói; já as meninas mais bem comportadas, vilipendiavam-nos. Em resposta a actos dessa natureza, a idosa erguia-se, praguejava e abria a porta, ameaçando os miúdos que se escapuliam entre risos tensos. As raparigas fugiam e, assim que conseguiam uma distância de segurança, ralhavam com os rapazes. A Dona Vitória exasperava e ameaçava matá-los, pasme-se! Apesar da idade, os rapazes tinham medo da velha, mas os louros de alcançarem o feito do derrube de uma daquelas imagens, compensava largamente. A observação mais atenta da formatura das imagens na cómoda mostrava que, algumas delas, estavam amputadas de braço, outras com o nariz partido, decepadas de cabeça ou com a aura divinal torta. (...)