terça-feira, março 21, 2006

Abraço de Poesia

Nesta ilha abraçada de mar,
Rodeada de basalto negro…
Acolho os teus braços marinhos
Das ondas elevados,
E no escuro da rocha dura
Escondo a íntima carícia que me afaga
Velando a essência poética
No ilhéu que se ergue na bruma,
No algodão das ondas…
Na praia de areia escura.

sexta-feira, março 17, 2006

Ilha da Desventura



Que mal te fizeram, Ilha?
Quem te varreu a harmonia?

O basalto enlutado
Assoma de negro na noite
No medo desvairado
De um acordar irrompido
Por guindastes e ecos metálicos
Caprichos de ideias loucas
Oh mar! Socorre este demente…
Salva a ilha enquanto é tempo.

Perfuraram tuas entranhas…
Num desdém impiedoso,
Espalharam o teu sangue na tua calvície…
Escorrendo-te pela face
Veios de mágoa e imundície…

Quem te trespassou o corpo?
Em cilícios que se cravam nas tuas encostas
Para por ti passarem
Vilipendiados circuitos comodistas,
Subjugados ao fácil
Déspota usurpação da tua forma.

Quem te transfigurou a face?
Cataplasmas de betão
Remendam a tua alma
E teus habitantes sorvem aturdidos
Arengas saloias,
Gritos e insultos esbaforidos.

Quem te conspurcou o calhau?
Os roliços seixos que amainavam as ondas?
Soterrados na lama de cimento
Nas vigas de ferro lancinantes
Perversa forma de enganar
A maresia pura, do mar oriunda.

Quem te amaldiçoou?
Que esconjuro, maldito!
Por pérola te tratavam…
E, eis-te, no Atlântico,
Imersa de mar, possuída pela agonia.

Foto e poema: Duarte Olim

quarta-feira, março 15, 2006

Despojos da Noite

Cai a noite quieta e fria…
A mesma luz, a rotina das sombras…
Sôfrega espera do desejo
Do recolhimento das ruínas da carne
No lânguido volver dos dias
Vazio de progressos
Um tic-tac pernicioso,
Uma pertinaz marcha dos ponteiros.

Arrasto-me na escória do quotidiano
Destroçado pelos despojos do pensamento
Livre de crivos estreitos
Palpita o coração na noite…
Farol do meu corpo derreado
Que em voz se transforma
Depurativo cansaço que me solta
No cerrar do dia,
Mitigador da razão
Em linguagem de amor,
Sem pudica aversão, à emoção.

Na rua, o frio irrompe nos recantos protegidos
Aqui, sob as mantas,
Acorrem-me outros medos.

Nos lugares ermos da noite
No patamar de entradas, nos átrios abrigados
Recolhem-se inermes contra o frio
Imersos na solidão desabrigada
Longe do mundo,
Distantes da bonomia do homem.
Os sem-abrigo,
Sem um afago na noite
Sem um sequer, sinal de afecto.

Os meus medos? Que medos?
Quais inquietações?!
Solidariedade, fraternidade… onde derivam vocês?!
Nas intenções beneméritas discursivas?

A garra titânica da sobrevivência
Contorce-se lá fora.
E alienados estamos…
Na avareza do fútil.

quinta-feira, março 09, 2006

9 de Março

Imerso no calor uterino, o meu mundo era molhado, de viscosidade inodora. Privado da contemplação de paisagens, limitava-me às cores dos meus sonhos. Sonhava com uma expedição. Entretanto, revolvia-me nas entranhas dum mundo hermético, de paredes macias que amorteciam as pancadas dos meus crescentes espasmos.
Com o decorrer do tempo, ia ganhando consciência de uma vida: a minha! Sentia-me a levitar, como se fosse levado por uma bailarina. A leveza que me sustinha, embalava-me, mas sentia o meu universo limitado. Precisava descobrir. Soerguer-me deste leito uterino, e voar pelo mundo. Precisava ampliar os horizontes, conquistar afectos, descobrir a vida. Tentar fazer a distinção entre o que era supérfluo e o essencial. Passei a ouvir sons indiscerníveis.
Cresci vagarosamente, em reverência com o espaço diminuto onde me submergia.
Uma liberdade sufocante, mas que, estranhamente, me fazia sentir seguro.
O Inverno despedia-se, os pássaros iniciavam o rodopio, antecipando a Primavera. Apesar de ainda não se comemorar como agora, passou o dia da mulher. Noite adentro, eu dava sinais de inquietação, querendo saltar para outra dimensão. Numa cruzada rumo ao desconhecido. Enchi-me de medo, uma ansiedade que contive por aceitar com serenidade as contrariedades.
A madrugada de Inverno tardava, e senti o meu mundo comprimir-se. Tinha chegado a hora de me lançar na expedição da vida. Enchi-me da coragem que não costumo revelar, e deixei-me impelir para o desconhecido.
Na quietude da noite, num lugar alcandorado da cidade do Funchal, ouviu-se, numa divisão incerta, um bebé que chorava compulsivamente. Perscrutava em seu redor, olhando com espanto para tudo, mas ansiando um colo. Um apelo inato a quem, durante aquele período, embalou o embrião rumo a este mistério.
Relembro na memória infinda, como deve ter sido acolhedora e comovente a sensação de me recostar no colo materno. Aquele que me velou no crescer e me orientou para esta missão vida, tantas vezes ininteligível. O mistério prossegue, e sinto um desejo sôfrego de viver mais. Amar. Sonharei um dia com outra dimensão. Agora quero ficar aqui, sentir a poesia fluir no meu corpo. À minha volta, tudo ainda permanece secreto. À medida que pareço destrinçar uma chave do enigma, mais intrincado ele me surge. É isto que me cativa e me faz amar a vida. E são os afectos que lhe dão todo o sentido. Ou não será este o começo da decifração de um código que responda às mitológicas perguntas: De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?

quarta-feira, março 08, 2006

Será que a menina dança?

– Só com o João Duarte! – retorquiu ela.
Nessa noite não me apetecia dançar, mas contagiava-me a presença tão próxima da menina. Atenta à minha selecção discográfica, indagou-me de imediato:
– Mas, como podemos dançar esta música? Não tem ritmo, falta-lhe swing! – acrescentou ela.
– Menina! – contrapus – quem lhe disse que eu sei dançar?
– Deixe-se levar pelos meus passos, ensinar-lhe-ei a dançar com a leveza de uma folha, impelida pela brisa de Outono. Deixe-se guiar por esta folha, levitarei segura como uma criança velada pela mãe-árvore – disse a menina.
Quase não resisti ao gracejo poético dela.
– Como? – balbuciei. “My Funny Valentine” não era para nós dançarmos. Lá fora chovia, as gotas da chuva salpicavam na janela. O frio tornava o espaço ainda mais acolhedor. Chet Baker convidava ao recolhimento, apelando aos corpos que se enleassem para fruírem do intimismo dos seus trechos melancólicos. Os mais optimistas designariam por românticos. Como eu o fazia.
A expressão de Chet Baker, na capa, era lívida e crua. Contrastava com as melodias que ele recriava com o seu trompete, num som metálico doce, macio, com um lirismo que embevecia qualquer comum mortal.
– Porque não Frank Sinatra? – suplicou ela. Na minha reverência, pedi à menina que não me obrigasse a dançar verdadeiramente. Ela aquiesceu.
Fechou-se a bandeja do leitor de CD’s, e os primeiros acordes soaram ao som da melodia “My Funny Valentine”.
Recostamo-nos e contagiados pelo abraço, sussurrei, no preciso instante em que a voz inconfundível de Chet ecoava, ao ouvido da menina:
– Os nossos corpos não dançam, mas o meu coração baila sem parar – ciciei-lhe – Existirá melhor dança do que esta?
Ela riu-se, e disse baixinho:
– Só contigo sinto o meu coração dançando desta maneira.

sábado, março 04, 2006

Crepúsculo do Mar



Invadido por este brilho azulino
Rendo-me na beira da falésia,
E, na languidez da tarde
Recosto a cabeça nas costas das ondas.

Irrompe este azul por mim adentro,
Infinito como o horizonte
Inunda-me o espanto
Por este mar sumptuoso, belo
Debruado por sombras
Que o crepúsculo recorta no manto marinho
Das nuvens suspensas,
Alcandoradas no caminho.

Centelhas pululam nas correntes
Reluzindo neste mar ilhéu
Quais estrelas nascendo
Que se elevam para o céu.

Perto de mim, surgem esparsas
Lá fora, adensam-se indefinidas
Na linha do horizonte
Um filamento reverbera desta luz
Minguando a claridade das águas
Enquanto a tépida tarde
Vai esfriando os meus braços
E a minha ânsia
Vira brandura e calma,
Nesta hipnose reconfortante
Panaceia da minha alma.

Foto e poema: Duarte Olim

sexta-feira, março 03, 2006

Carnaval


The Tilled Field de Joan Miró


Folguedo eufórico,
Esgazeada transformação deste dia
Sambado, silvado de apitos delirados
Cores espiraladas na rua
Por serpentinas irrequietas.
Batuques na praça
Ribombando nas esquinas do pecado,
Crianças alegres vestidas
De mitos e heróis imberbes
Crença pueril e pura
Que existem para este mundo injusto.

Gente feliz
Decalcada nas arestas do fantástico
Por poder incarnar o que gostaria
Num mundo mascarado de Éden
Remetendo para estes disfarces
Fugazes,
Trajes puídos de brilho
Almas escondidas num desvario
Pagã forma de exorcizar
Tanta fantasia
Num grito sortido de folia.