Memória Viajante
Raramente viajo de comboio, e faço-o apenas em períodos de lazer. No meu imaginário, os comboios são brinquedos que, só em adulto, tive oportunidade de utilizar a sério. Vivo numa ilha montanhosa, e nem as distâncias, nem o relevo se configuraram para esta solução de transporte. Outrora, existiu um cá na cidade, na altura única. Agora proliferam, mas carris, nem vê-los. Carros, esses cirandam por aí como formigas desconcertadas e acometidas por um siroco. Comboios mesmo, só nas lojas de brinquedos: perdidos entre bonecos em forma de monstros e de robots grotescos. Mas voltando aos comboios, sempre me deliciei com a suavidade com que serpenteiam as encostas, as planícies, pelo espreitar de povoações, recortando os vales e ladeando os rios, vogando terra afora, sem regresso anunciado. Continua a ser uma experiência única viajar de comboio. São paisagens que se sucedem, estações que ficam para trás, pessoas sentadas à espera… muitas vezes sem se saber de quê? São fluxos frenéticos de entradas e saídas de desconhecidos. De outras azáfamas. Observo as expressões das pessoas, os gestos, as suas movimentações que me suscitam curiosidade, os seus fitos inimagináveis; acolho a oportunidade de entrecruzar olhares, e a tentativa de descerrar mistérios daquelas vidas que coabitam comigo aquela carruagem. Umas entram, umas observam, outra pega um livro: aquele que nos leva, quase despudoradamente, a olhar de soslaio na ânsia de ler o título, identificar o autor, e desse modo intrometer-nos naquela existência que, à frente ou ao nosso lado se instala. Aquela curiosidade ousada de saber algo sobre aquela gente, reflectido no tipo de leitura. Ou noutro movimento despretensioso, na indumentária que veste, ou na bagagem que reflecte indícios de actividades ou profissões, sinais que mostrem a aridez da vida. Ainda o incómodo de um olhar que se fixa no nosso, e que naquele hiato, se baixa como que envergonhado pela intromissão. Como se os olhares se lessem mutuamente, e no seu prolongamento desnudassem a vida.
Algumas vezes deixamo-nos embalar, e entre o estrépito abafado que espaçadamente ressoa dos carris, um torpor hipnotiza-nos por lassidão, ficamos sonolentos, mas, do vazio do sono à espreita, surgem inesperadas situações que nos despertam, nos arrebatam de chofre. Recordo-me uma vez de uma velhinha sorridente e simpática que entrou no comboio com um cão, e foi advertida pelo funcionário que, incautamente ou não, quando se apercebeu da situação, o comboio já reiniciara outra de muitas partidas. Encheu-se de indulgência e rendido à magnificência da anciã, transformou o seu dever em permissividade daquele interdito, aveludado por expressões vizinhas de comiseração. A senhora sorria, e na sua expressão afectuosa e jovem, persuadiu-o. O comboio trilhava num meio rural, e o cheiro que de fora refulgia, era campestre, fresco e perfumado.
Uma porta abriu-se, e de outra carruagem, apareceu uma jovem, uma menina de traços tão delicados, de expressão muito doce e um sorriso assaz contagiante, que, ali mesmo, defrontando-se com a velhinha, estacou. Por essa altura, a velhinha ainda se interrogava aos seus botões, sobre a precariedade da vida imputável nos seus irreflectidos actos, um dos quais, o de trazer com ela o seu fiel amigo. Talvez o único que se dignava a acompanhá-la. Mas a jovem e a velhinha, mal se olharam, gerou-se tal empatia, que de imediato esta sentou-se ao lado da anciã. Sorriram-se. O cão estabeleceu o elo que facilitou o prelúdio do diálogo. A menina não se coibiu de acariciar a senhora com o olhar, e aquela candura vibrante arrebatou-me. Era tão terna, e aquele inusitado contacto entre distintas gerações, comprazia-me face à distância que infelizmente existe na realidade, consubstanciada na frieza, no desrespeito e no desprezo para com os mais idosos. Mas aquela menina ali estava, de olhar intenso, fervoroso, dotado de uma doçura invulgar. Era daquelas pessoas que nos contagiam com uma aura que nos inculca de magia e esperança na vida, no admirável mundo que nestes insólitos momentos, nos revigoram a esperança e nos retocam as fissuras do pessimismo que corroem a nossa alma. Foi assim, distante da minha língua, que assisti a este exemplo inolvidável. A conversa entre as duas, tomou contornos tão enleantes, que as duas redireccionaram-se uma para a outra, enquanto a menina inebriava com a sapiência cândida da velhinha. Discorriam num intenso diálogo, intervalado por pequenos afagos carinhosos com as mãos.
E não foi inocente a perseguição distraída que, quase involuntariamente, fiz à menina, enquanto esta se ia perdendo por entre a multidão, no afastamento buliçoso da estação da capital. A expressão da menina irradiava um magnetismo miraculoso. Procurei fazer perdurar aquele momento, enlevado por aquela grata contemplação.
Sempre que recordo a menina, sinto que minha expressão muda, que o mundo avança, que o sonho é magia, tão real como aquele rio que ladeou o comboio nessa viagem, espelhando a doçura daquele olhar enternecedor que me tocou, tal como outros ainda tocarão. É pelas provas de afecto que emerge a essência da vida, e é por elas que tudo se move, seja em memórias de viagens, ou em inesperados momentos do nosso fugaz quotidiano.
Até um dia jovem menina.
Duarte Olim